Mais um capítulo sobre aquisição de imóveis rurais por estrangeiros: recente cassação pelo STF da decisão monocrática que suspendia a tramitação das ações judiciais individuais que discutem a questão.

O Supremo Tribunal Federal, nos autos da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 342 e da Ação Cível Original 2463, cassou na última sessão virtual de 28.4.2023 a 3.5.2023 a medida cautelar concedida pelo Ministro Relator André Mendonça que determinava a suspensão de todos os processos judiciais em trâmite no território nacional que versavam sobre a validade do §1º do art. 1º da Lei Federal nº 5.709/1971.

 

A Lei Federal nº 5.709/1971 regula “a Aquisição de Imóvel Rural por Estrangeiro Residente no País ou Pessoa Jurídica Estrangeira Autorizada a Funcionar no Brasil, e dá outras Providências”. Em seu artigo 1º, §1º, a Lei equipara a “pessoa jurídica brasileira da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no Exterior” à pessoa jurídica estrangeira, impondo também a ela as restrições constantes da Lei para aquisição de imóvel rural.

 

Referida norma determina que as pessoas jurídicas estrangeiras – ou a ela equiparadas – somente podem adquirir imóveis destinados à implantação de projetos agrícolas, pecuários, industriais, ou de colonização, vinculados aos seus objetos estatutários (art. 5º).

 

Para cumprir esse requisito, a empresa precisa apresentar projeto ao INCRA para aprovação, sendo que para áreas superiores a 100 módulos de exploração indefinida (MEI) é necessária aprovação do Congresso Nacional; além disso, a soma das áreas não pode ultrapassar 25% da área total do Município.

 

Na prática, a Lei veda a aquisição de área rural por pessoas jurídicas ou a ela equiparadas, eis que absolutamente burocrático e oneroso cumprir os requisitos prescritos – isso quando, em teoria, seu cumprimento é possível.

 

A Lei é alvo de constantes discussões jurídicas acerca de sua constitucionalidade (recepção, total ou parcial, pela Constituição Federal de 1988). O ponto mais sensível e discutível, sem dúvidas, é a equiparação da pessoa jurídica brasileira com participação majoritária de estrangeiro à pessoa jurídica estrangeira.

 

A interpretação que se dava à equiparação do art. 1º, §1º da Lei favorecia a aquisição de imóveis por empresas brasileiras com participação estrangeira (pessoas físicas ou jurídicas), na medida em que prevalecia o entendimento de que a equiparação para fins de limitação na aquisição e arrendamento de imóvel rural era inconstitucional. Era esse, inclusive, o posicionamento da Advocacia Geral da União, conforme se depreende dos Pareces nºs GQ-22/1994 e GQ-181/1998.

 

Contudo, após 2010 e nos termos do Parecer CGU/AGU nº 01/2008-RVJ, restou sinalizada a constitucionalidade do dispositivo legal, definindo-se que as restrições também se aplicam às empresas brasileiras equiparadas às estrangeiras. Segundo o próprio parecer da AGU, a expressão ‘a qualquer título’ “refere-se à participação direta – a própria pessoa física ou jurídica é detentora de ações ou quotas da pessoa jurídica brasileira – ou à participação indireta – que se dá quando quem detém as ações ou quotas é interposta pessoa jurídica, como, p.ex., as empresas controladas, cuja maioria do capital social estejam nas mãos de estrangeiros.”.

 

O parecer da AGU vincula apenas os órgãos da administração pública federal, razão pela qual inúmeras ações judiciais discutem a constitucionalidade da equiparação criada pelo art. 1º, §1º da Lei, assim como as restrições impostas às pessoas jurídicas estrangeiras.

 

Nesse contexto é que surgem as ADPF 342 e ACO 2463. A primeira proposta pela Sociedade Rural Brasileira em face do art. 1º, §1º da Lei Federal nº 5.709/1971 e do Parecer CGU/AGU nº 01/2008-RVJ, sob a alegação de que a citada norma interpretada a luz do parecer da AGU afronta os preceitos constitucionais da “livre iniciativa, desenvolvimento nacional, igualdade, propriedade, liberdade de associação e segurança jurídica”. A ação cível ordinária, por sua vez, foi proposta pela União e pelo INCRA visando a declaração de nulidade do Parecer nº 461/12-E da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, elaborado após o julgamento do Mandado de Segurança nº 0058947-33.2012.8.26.0000 pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo que considerou que o § 1º do art. 1º da Lei nº 5.709, de 1971 não foi recepcionado pela Constituição da República de 1988.

 

Os referidos processos no STF aguardam julgamento desde 26.2.2021, sendo certo que, diante da recente cassação da liminar outrora deferida nos autos e a retomada dos processos em âmbito nacional que discutem a constitucionalidade do art. 1º, §1º da Lei Federal nº 5.709/1971, espera-se que o Supremo retome o julgamento com celeridade e resolva definitivamente a questão.

 

De todo modo, importante pontuar que o Poder Legislativo há anos tenta a modernização e adequação de melhor regime para aquisição de imóveis rurais por estrangeiros. Cita-se nessas breves notas o Projeto de Lei nº 2.963/2019, de autoria do Senador Irajá Silvestre Filho (PSD/TO), que regulamenta a aquisição, posse e o cadastro de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira.

 

O Projeto de Lei visa adequar a legislação à ordem constitucional – promovendo o tratamento igualitário entre empresas brasileiras e estrangeiras, conforme Emenda Constitucional nº 6 de 1995 –, prevendo, por exemplo, a dispensa de autorização ou licença para aquisição e posse por pessoas estrangeiras quando se tratar de imóveis rurais com área não superior a 15 módulos fiscais (art. 6º) e a 25% da superfície do(s) município(s) onde se situem, desde que seja o único imóvel rural do estrangeiro.

 

Outro destaque do Projeto é a ausência de restrições para aquisição de terras rurais por pessoas jurídicas brasileiras constituídas ou controladas direta ou indiretamente por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, retomando a interpretação que se dava ao art. 1º, §1º da Lei Federal nº 5.709/1973 antes da aprovação do Parecer CGU/AGU nº 01/2008-RVJ no ano de 2010. O PL, em seu artigo 16, convalida as “aquisições e os arrendamentos de imóveis rurais celebrados por pessoas físicas ou jurídicas brasileiras […] durante a vigência da Lei nº 5.709” (art. 16).

 

O Projeto de Lei foi aprovado pelo Senado Federal em 15.12.2020 e seguiu para a Câmara dos Deputados, onde foi recentemente apensado ao PL 2964/2022, de autoria do deputado Jerônimo Goergen (PP/RS).

 

Até que se altere a Lei e/ou se defina pela inconstitucionalidade ao menos do artigo 1º, §1º da Lei Federal nº 5.709/1971, os estrangeiros ou pessoas jurídicas brasileiras a eles equiparados permanecerão impossibilitados de adquirir imóveis rurais.

 

Em conclusão, diante da recente cassação da liminar outrora deferida nos autos e a retomada dos processos em âmbito nacional que discutem a constitucionalidade do art. 1º, §1º da Lei Federal nº 5.709/1971, espera-se que o Supremo Tribunal Federal retome o julgamento com a máxima brevidade possível e resolva – com sabedoria – definitivamente a questão.

 

Por fim, mas não menos importante, essas restrições, como parece óbvio, ocorrem apenas para aquisição de imóveis rurais. Não é raro que imóveis rurais, em determinado momento e por diversos fatores – dentre os quais destaca-se a expansão do perímetro urbano de acordo com o plano diretor dos Municípios –, sejam transformados em urbanos, situação que afasta a aplicação da Lei Federal nº 5.709/1971, viabilizando que estrangeiros e pessoas jurídicas brasileiras equiparadas adquiram e vendam bens imóveis. Como se trata de uma situação absolutamente lícita, casuisticamente, nosso escritório já conseguiu regularizar algumas fazendas nessa situação.