Reflexões sobre o parecer do Conselho Federal da OAB sobre o PL 6.204/19 – parte I

Flávia Pereira Ribeiro e Renata Cortez

 

Porque a função de agentes de execução deve ser delegada aos tabeliães de protestos, nos termos do PL 6.204/19.

A Ordem dos Advogados do Brasil, por meio de seu Conselho Federal, emitiu parecer no qual, dentre outros pontos, contrapõe o PL 6.204/19 quanto à eleição do agente de execução, sugerindo que advogados cadastrados possam exercer a função sob o controle da própria OAB, mantendo-se a possiblidade do exercício do mandato judicial com certas restrições.

Traremos, nesta coluna, algumas reflexões sobre o referido parecer, que serão divididas em duas partes: I) porque a função de agentes de execução deve ser delegada aos tabeliães de protestos; e II) porque a função de agentes de execução não deve ser realizada por advogados, nos termos sugeridos pelo parecer do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

O PL 6.204/19, que propõe a desjudicialização da execução civil, sugere que às serventias extrajudiciais seja delegada a função pública de execução de títulos judiciais e extrajudiciais, por meio de outorga a um profissional de direito concursado – o tabelião de protestos – cuja remuneração seja realizada de acordo com os emolumentos fixados por lei, em sua maior parte cobrada do devedor ao final do procedimento executivo. A fiscalização dessa atividade será realizada pelo Poder Judiciário, através do Conselho Nacional de Justiça e das corregedorias gerais de justiça estaduais.

Segundo José Afonso da Silva, a delegação corresponde à “outorga de serviço público a pessoa privada em nome próprio e por sua conta e risco”. A delegação não confere ao delegatário o exercício de cargo público, não há nomeação e tampouco provimento. A delegação de ofício também não se confunde com a delegação de competência ou de encargos administrativos. A delegação é, sim, um “modo de atribuição do serviço a particulares que se habilitam para tanto”, no caso dos notários e registradores, mediante concurso público.1

O ofício delegado é de competência do Estado, cuja titularidade é mantida; tão somente o exercício desse ofício é transferido a um particular. Não é demais frisar: pública é a função notarial e registral, privado é o seu exercício.2

Assim, o PL 6.204/19 propõe que sejam delegadas a um agente privado as funções de verificar os pressupostos da execução, realizar a citação, penhorar, vender, receber pagamentos e dar quitação, reservando-se ao juiz estatal a eventual resolução de litígios, quando provocado por intermédio dos embargos à execução, da impugnação ao cumprimento de sentença e de outros instrumentos previstos no PL, como a consulta e a suscitação de dúvida.

Mais especificamente, o PL 6.204/2019 busca promover a transferência da maior parte das atividades executivas, hoje desempenhada pelos órgãos do Poder Judiciário, ao tabelião de protestos, já que afeito aos títulos de créditos e outros documentos de dívida e dotado de infraestrutura para localização e intimação do devedor.

Para que se possa justificar a ampliação das funções do tabelião de protestos, delegando-lhe a atividade executiva, é relevante observar suas competências originárias, para então afirmar que há afinidade procedimental, ainda que a execução seja mais ampla, envolvendo outras práticas como a penhora e a alienação de bens.
Segundo a lei 9.492/97, compete privativamente ao tabelião de protestos “a protocolização, a intimação, o acolhimento da devolução ou do aceite, o recebimento do pagamento, do título e de outros documentos de dívida, bem como lavrar e registrar o protesto ou acatar a desistência do credor em relação ao mesmo, proceder às averbações, prestar informações e fornecer certidões relativas a todos os atos praticados” (art. 3º).

Reconhecendo a capacidade e a especialidade técnicas e a atuação eficaz dos tabeliães de protestos, o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento 72/19, que dispõe sobre medidas de incentivo à quitação ou renegociação de dívidas protestadas nos tabelionatos de protesto do Brasil, que serão consideradas fase antecedente à possível instauração de procedimento de conciliação ou de mediação.

Segundo o Provimento, o procedimento terá início mediante requerimento do credor ou do devedor e o tabelião poderá, entre outras medidas, expedir aviso ao devedor sobre a existência do protesto e a possibilidade de quitação da dívida diretamente no tabelionato; receber o valor do título ou documento de dívida protestado; dar quitação ao devedor e promover o cancelamento do protesto; receber do devedor proposta de parcelamento da dívida e encaminhar ao credor, entre outros.

Nota-se, assim, que já em vigor há instrumento normativo que reconhece a tais tabeliães atribuições que vão além do protesto.
Além disso, importante registrar que, conforme se extrai da pesquisa Cartório em Números realizada pelo Instituto de Protesto (IEPTB), de abril de 2017 a março de 2018, relativamente às Certidões de Dívidas Ativas, foram recuperados aproximadamente 2 bilhões de reais para os cofres públicos, o que corresponde a 28,4% dos créditos inadimplidos e enviados a protesto; relativamente aos títulos privados, os números são ainda mais expressivos: foram recuperados mais de 18 bilhões de reais, o que equivale a 67,9% dos títulos enviados a protesto.

Se esses resultados pudessem ser estendidos à atividade executiva, haveria um incremento na efetividade do cumprimento das obrigações de pagar quantia no Brasil, devendo-se ressaltar que a execução civil é uma das responsáveis pelas altas taxas de congestionamento do Poder Judiciário. Segundo o Relatório Justiça de Números 2020, 77 milhões de processos estavam pendentes de baixa no final do ano de 2019 e 55,8% desse montante são execuções, o que corresponde a mais de 42 milhões de processos. É bem verdade que a maioria deles é de execuções fiscais (70%). Inobstante, é também expressivo o quantitativo de execuções não fiscais, que totaliza mais de 12 milhões de processos.4

Tais estatísticas trazem segurança ao que propõe o PL nº 6.204/2019, especialmente no sentido de ampliar os poderes dos tabelionatos de protestos, já que afeitos aos títulos executivos e à sua cobrança. A estrutura existente é apta a dar efetividade também para a execução; a habilidade na análise do título para o protesto poderia ser aplicada na verificação dos pressupostos da execução; os sistemas de localização de endereço do devedor, de expedição e efetivação de intimação e de publicação de edital servem tanto para o protesto como para a execução. No mais, é dotar a serventia de acesso a todos os termos, acordos e convênios fixados com o Poder Judiciário para consulta de informações, devendo haver uma base de dados mínima obrigatória, conforme bem previsto no artigo 29.5

Caso seja aprovado o PL 6204/19, é certo que os tabelionatos de protesto podem se estruturar para praticar os atos correspondentes à função de agentes da execução, devendo-se lembrar que a gestão dos cartórios é privada e que, portanto, havendo aumento de demanda, o delegatário pode, por exemplo, aumentar o espaço, a estrutura e o número de colaboradores, não dependendo, para tanto, de qualquer contribuição financeira do Poder Judiciário.

Ainda que não haja atualmente tabelionatos de protestos em todas as cidades do país e em quantitativo suficiente para atender à demanda que deve advir da aprovação do PL 6204/19, podem ser criadas por lei novas serventias, com a realização de concurso público para o seu preenchimento, lembrando que a Constituição não permite que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.

Destaque-se que a criação de novas serventias não representa qualquer ônus para o Poder Judiciário, porquanto a instalação da serventia é de responsabilidade do delegatário, além de que a remuneração dos serviços é realizada pelo usuário, através dos emolumentos, devendo-se ainda ressaltar que parte dos valores arrecadados pelos delegatários é repassada ao Poder Judiciário.

Entende-se que não se revela adequado, pelo menos em um primeiro momento, o exercício da função de agentes de execução por delegatários de outras serventias extrajudiciais, que não sejam os tabeliães de protestos.

Primeiro porque, como já dito acima, o insuficiente quantitativo de tabelionatos de protestos atualmente existente no Brasil é problema de fácil solução, dada a possibilidade de criação de novas serventias por lei, realização de concursos públicos para seu provimento e instalação por conta e risco do delegatário. Ademais, a implementação do PL será paulatina, não sendo admitida a redistribuição dos processos para os agentes de execução, conforme artigo 25. Assim, a desjudicialização poderá ser levada a efeito em etapas, aproveitando-se a estrutura dos tabelionatos de protestos atualmente existentes até que outros sejam criados e instalados.

Em segundo lugar, porque os tabelionatos de protestos já estão estruturados e habituados às cobranças de dívidas, sendo certo que detêm o conhecimento técnico que mais se aproxima àquele exigido para o exercício das funções de agentes de execução, exatamente por lidarem diuturnamente com questões atinentes aos títulos executivos.

Uma das maiores vantagens do exercício de tal mister por delegatários das serventias extrajudiciais consiste na circunstância de que tais profissionais, embora exerçam suas atividades de modo privado, são responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem. Além disso, o STF reconheceu a responsabilidade objetiva do Estado pelos atos dos delegatários que, no exercício de suas funções, causem danos a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa6, de modo que o usuário pode acionar, em caso de prejuízos, o delegatário ou o Estado.

Ademais, a atividade notarial e registral está submetida à constante fiscalização por parte do CNJ e das Corregedorias-Gerais de Justiça estaduais, ou seja, o próprio Poder Judiciário fiscaliza a atuação dos delegatários das serventias extrajudiciais, que podem sofrer processo administrativo disciplinar e sofrer sanções, inclusive a perda da delegação. Sendo os agentes de execução tabeliães de protestos, estarão submetidos à atividade correicional das corregedorias de justiça, ou seja, do próprio ente delegante.

Em conclusão, entende-se que a melhor opção é a prevista no PL 6204/19, com a delegação da função de agentes de execução aos tabeliães de protestos, por todos os motivos acima elencados, mas especialmente pela garantia de controle social relativamente aos atos praticados por tais delegatários, seja pela sua fiscalização constante por parte do Conselho Nacional de Justiça e pelas Corregedorias estaduais, seja pela responsabilidade subjetiva dos notários e registradores prevista em lei, inclusive quanto aos atos de seus prepostos, e pela responsabilidade objetiva do Estado relativamente aos atos praticados por tais delegatários.

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1- SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005. p.878.

2- CAHALI, Francisco José; HERANCE FILHO, Antonio; ROSA, Karin Regina Rick; FERREIRA, Paulo Roberto Gaiger. Escrituras públicas: separação, divórcio, inventário e partilha consensuais: análise civil, processual civil, tributária e notarial. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p.50.

3- Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 16 jul. 2020

4- Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 01 set. 2020

5- Disponível em: Clique aqui. Acesso em 18 jan. 2020.

6- Tema 777 do STF em Repercussão Geral. Tese: O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa.

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*Renata Cortez é Registradora Civil e Tabeliã no Estado de Pernambuco. Mestre em Direito e Especialista em Direito Processual Civil pela UNICAP. Membro do IBDP. Membro da ANNEP. Coordenadora da Pós-Graduação em Advocacia Extrajudicial do IAJUF/Unirios.

*Flávia Pereira Ribeiro é Pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa (2020). Doutora em processo civil pela PUC/SP (2012). Mestre em processo civil pela PUC/SP (2008). Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP (2014). Membro do IBDP, do CEAPRO e do IASP. Membro do Conselho Editorial da Juruá Editora e da Revista Internacional Consinter de Direito. Diretora Jurídica da ELENA S/A. Sócia de Flávia Ribeiro Advocacia (desde 2008). Atuação no contencioso cível e imobiliário e consultivo imobiliário. Integrante da comissão de elaboração do PL 6.204/2019 – desjudicialização da execução civil.

 

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