As astreintes e os recentes parâmetros de fixação do STJ

Flávia Pereira Ribeiro e Fernanda Zambrotta

 

Os REsp 1.840.693/SC e 1.819.069/SC de 29/05/20 e AgInt no AREsp/SP 1.657.149 de 30/06/20 trazem novos aspectos sobre a finalidade da multa coercitiva e parâmetros para sua fixação.

 

O STJ recentemente proferiu decisões que causaram grande alvoroço no mundo jurídico, com a confirmação da multa coercitiva no valor de R$ 3.100.000,00 em ação cuja condenação perfazia R$ 20.000,00. Os acórdãos foram proferidos nos Recursos Especiais 1.840.693/SC, no qual o Santander e Autor são recorrentes e 1.819.069/SC, no qual a Aymoré é recorrente.

As decisões causam impacto se sopesados os valores da condenação da obrigação principal e os da multa cominatória. Mas a análise do caso concreto demonstra que a manutenção da multa em patamares tão elevados foi corretíssima, diante dos aspectos que envolveram a desobediência da ordem judicial.

Em uma síntese bem apertada, tendo em vista a extensão dos fatos, foi determinado prazo para que a Ré retirasse os dados do Autor de todo e qualquer órgão de restrição ao crédito, sob pena de multa diária de R$ 10.000,00, posteriormente reduzida, em sede de Agravo de Instrumento, para R$ 3.000,00.

Também foi cominada uma segunda multa no valor único de R$ 50.000,00 para a hipótese de novo apontamento indevido. Posteriormente sobreveio a sentença de procedência ao pedido principal de indenização por danos morais no valor de R$ 20.000,00. A Ré Aymoré realizou novo apontamento indevido e o manteve pelo período de 27/10/2014 a 18/9/2015.

Consta dos autos que em dado momento, quando o débito perfazia o montante de R$ 553.842,72 – incluindo a indenização por danos morais -, o Autor promoveu o cumprimento da sentença, no qual foi bem sucedida a penhora on-line. Não obstante a manutenção da desobediência pela Ré no processo originário, a instituição financeira na qual estava depositado o valor bloqueado desobedeceu a ordem da transferência para a conta judicial.

Em face dessa desobediência, foi cominada multa diária de R$100.000,00 por dia de atraso na transferência, posteriormente reduzida para R$10.000,00 em sede de Agravo de Instrumento. Provavelmente em razão da redução da multa, a instituição financeira demorou 280 dias para cumprir a simples ordem de transferência do numerário.

Consta dos autos que, para fins de viabilizar a efetivação da ordem, já que a multa se mostrava insuficiente, foi determinada a penhora na “boca do caixa” do valor bloqueado para transferência imediata para a conta do juízo, sendo transcrita na decisão a saga pela qual passou o oficial de justiça para garantir o cumprimento da decisão.

O oficial de justiça narrou em sua certidão que no momento do cumprimento da sua diligência, ao questionar a advogada do banco acerca do não cumprimento da ordem judicial, ela respondeu que não o fez por estratégia de defesa, pois pretendia impugnar o ato e reduzir ainda mais a multa. Resta patente que não havia qualquer intenção da instituição financeira em obedecer a ordem judicial!

A desobediência injustificada, a condição financeira das Rés e o fato de nenhuma delas ter demonstrado adotar medida para minimizar seu próprio prejuízo foram os fatores preponderantes para a manutenção da multa pelo STJ.

A decisão é de extrema importância e traz um verdadeiro “farol” para dois pontos importantes. O primeiro deles é a (i) finalidade da multa coercitiva; o segundo deles são os (ii) parâmetros de fixação da multa e sua eventual redução ou majoração.

Acerca da (i) finalidade pode-se dizer que a multa coercitiva tem natureza de medida executiva indireta, sendo certo que o valor é sempre revertido ao exequente (art. 537, §2º do CPC). As astreintes são um importante instrumento de coerção: trata-se de penalidade pecuniária utilizada para forçar indiretamente o devedor ao cumprimento da obrigação3.

Em outras palavras, é um relevante mecanismo utilizado com a finalidade primordial de garantir que a tutela jurisdicional concedida à parte seja efetivamente recebida por ela, vez que o direito de ação não pode ser direito à sentença, mas sim ao bem da vida afirmado em juízo4.

Justamente buscando garantir a efetivação da tutela com a maior brevidade possível, diante da desobediência da decisão ou na sua iminência, as astreintes são, em geral, fixadas em valor diário, de modo que, quanto mais rápido o cumprimento da obrigação menor seja a multa.

O problema parece ocorrer quando a multa atinge patamares demasiadamente altos em decorrência do descumprimento prolongado, ensejando discussões que passam a girar em torno da proporcionalidade ou da razoabilidade de mantê-la diante do valor da obrigação.

Nessa esteira, muito se vê em decisões monocráticas e colegiadas que as astreintes não podem ser tão altas a ponto de se tornar vantajosas para a parte a qual se destina a tutela. Bem por isso, era comum em nossos tribunais a redução da multa com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade frente ao valor da obrigação principal, todavia essa análise isolada há muito tornou-se insuficiente para garantir que a multa atinja a sua finalidade. O STJ, em suas recentes decisões, tem dedicado maior atenção a outros aspectos – (ii) parâmetros.

Dias após a publicação das decisões mencionadas, o STJ, ao negar provimento ao AI no AREsp 1.657.149/SP5 ressaltou expressamente que para fixação da multa devem ser observados os seguintes parâmetros:  (i) valor da obrigação e importância do bem jurídico tutelado; (ii) tempo para cumprimento (prazo razoável e periodicidade); (iii) capacidade econômica e capacidade de resistência do devedor; (iv) possibilidade de adoção de outros meios coercitivos pelo magistrado e (v) dever das partes de mitigar o próprio prejuízo (duty to mitigate the loss).

Observamos nesta última decisão, ainda mais recente – 30/06/2020 -, que novamente o STJ indica como parâmetro não somente o valor da obrigação, mas aspectos diretamente atrelados às atitudes do devedor de desrespeito à determinação judicial, bem como ao valor realmente capaz de exercer no devedor a coerção ao cumprimento que se espera com a multa.

E para atingir efetiva coerção é impossível não levar em consideração o patamar econômico do devedor da obrigação, o tempo de duração do descumprimento e quais atos teve o devedor para minimizar seu próprio prejuízo, nesse caso, para evitar que a multa atingisse tão altos patamares.

Nos casos analisados, restaram confirmados o entendimento já fixado na doutrina. Citando Humberto Theodoro Junior: “o valor fixado para as astreintes só seria excessivo quando ultrapasse o necessário para demover o réu de sua recalcitrância”6.

Como visto nos acórdãos analisados, se nada fez a parte além de quedar-se inerte e descumprir a determinação judicial, a falta de razoabilidade ocorrerá na hipótese de eventual redução da multa, e não na sua manutenção. Não pode haver qualquer espaço para o descumprimento injustiçado e arbitrário do devedor.

As acertadíssimas decisões do STJ demonstram grande atenção à finalidade das astreintes, bem como aos bons parâmetros para a sua fixação. Agora nos resta acompanhar o comportamento do devedor diante das multas fixadas e a recepção do novo entendimento pelos Tribunais Estaduais.

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1- STJ, REsp 1.840.693/SC, Terceira, Turma, Relator Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, julgado em 26/05/2020, DJe  29/05/2020.

2- STJ, REsp 1.819.069/SC, Terceira, Turma, Relator Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, julgado em 26/05/2020, DJe  29/05/2020.

3- DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. Vol 3. 02ª edição. São Paulo: Editora Saraiva. 2005.

4- MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Inibitória (individual e coletiva). 04ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2006.

5- STJ, AgInt no AREsp 1657149/SP, Quarta Turma, Relator LUIS FELIPE SALOMÃO, julgado em 22/06/2020, DJe 30/06/2020

6- THEODORO JR., HUMBERTO. Processo de Execução e Cumprimento de Sentença. 30ª edição. Rio de Janeiro. Editora Forense. 2020.

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*Flávia Pereira Ribeiro é pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa (2020). Doutora em processo civil pela PUC/SP (2012). Mestre em processo civil pela PUC/SP (2008). Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP (2014). Membro do IBDP, do CEAPRO e do IASP. Membro do Conselho Editorial da Juruá Editora e da Revista Internacional Consinter de Direito. Diretora Jurídica da ELENA S/A. Sócia de Flávia Ribeiro Advocacia (desde 2008). Atuação no contencioso cível e imobiliário e consultivo imobiliário. Integrante da comissão de elaboração do PL 6.204/2019 – desjudicialização da execução civil.

*Fernanda Zambrotta é advogada. Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Pós-Graduanda em Direito Público pela Faculdade Legale.

 

 

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