Em tema que pode impactar negativamente o mercado, STJ analisará a (im)penhorabilidade de bem imóvel de família dado em garantia real para satisfação de dívida de terceiro.

O artigo 3º, V, da Lei n. 8.009/1990 determina a impenhorabilidade do bem de família em qualquer processo, salvo se movido para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar.

O STJ, interpretando a exceção, tem posicionamento no sentido de que a penhorabilidade do bem de família apenas deve ser admitida quando há comprovação que o proveito se reverteu em favor da entidade familiar.

Nesse sentido, no que tange à comprovação da reversão do benefício em prol da família, o STJ divide o ônus da prova em duas formas distintas em casos de garantia prestada em favor de terceiros:

1) se o bem foi dado em garantia real por apenas um dos sócios da PJ, aplica-se a regra da impenhorabilidade, cabendo ao credor provar que o crédito conferido à PJ se reverteu em benefício da família do sócio;

 

2) se os sócios são os únicos proprietários do bem dado em garantia, aplica-se a regra da penhorabilidade, cabendo aos devedores/proprietários comprovarem que o débito não se reverteu em benefício da família.

 

Embora não haja atualmente divergência na Corte Superior sobre o tema, afetou-se a questão – como repetitivo, visando a formação de precedente – diante de inúmeros julgados dos Tribunais de Justiça que não observam adequadamente a posição do STJ.

Nos recursos afetados (REsp 2105326/SP e REsp 2093929/MG) entendeu-se ora que basta a participação societária de apenas um dos proprietários para permitir a penhora (posição divergente do STJ, portanto), ora que há presunção de benefício à família porque o bem foi dado em garantia pelos únicos proprietários e sócios da empresa devedora (convergente com STJ).

No REsp 2105326/SP, o acórdão do Tribunal de Justiça entendeu que o fato do único imóvel oferecido como garantia por um casal para pagamento de dívida contraída por empresa da qual apenas a mulher é sócia é capaz, por si só, de afastar a impenhorabilidade, pois “a participação da agravante no quadro societário da empresa devedora principal basta à demonstração de que, em verdade, beneficiou-se do acréscimo patrimonial”.

No caso afetado, os agravantes sustentam que não houve nenhum proveito familiar, vez que o bem tão somente foi oferecido pela mulher em razão de uma exigência da empresa credora no sentido de que, sem o recebimento da garantia, não aceitaria a repactuação do pagamento do saldo remanescente da venda e compra imobiliária celebrada com a empresa pertencente a ela.

Já nos autos do REsp 2093929/MG, o acórdão do Tribunal a quo manteve decisão que reconheceu a penhorabilidade do bem dado em garantia, na medida em que “as proprietárias do imóvel [são] as únicas sócias da devedora”, presumindo-se, nesse caso, “ter havido o proveito econômico revertido em prol de sua família, já que o negócio é a fonte de sustento da entidade familiar”.

O recurso interposto pelo recorrente questiona justamente a falta de cabal comprovação de que o negócio foi revertido em benefício da família, não tendo, contudo, enfrentado expressamente a constatação do acórdão recorrido de que a garantia foi prestada pelos únicos proprietários que são, também, os únicos sócios da empresa devedora.

Assim, o STJ afetou os recursos para julgamento sob a sistemática dos repetitivos, fixando a questão federal a ser debatida como: “(i) necessidade de comprovação de que o proveito se reverteu em favor da entidade familiar na hipótese de penhora de imóvel residencial oferecido como garantia real, em favor de terceiros, pelo casal ou pela entidade familiar nos termos do art. 3º, V, da Lei n. 8.009/1990; e (ii) distribuição do ônus da prova nas hipóteses de garantias prestadas em favor de sociedade na qual os proprietários do bem têm participação societária.”.

A Ministra Nancy Andrighi, em voto vencido, propôs a não afetação do tema, por entender que “… a primeira questão […] conquanto seja bastante ampla, faz referência à dispositivo legal que apenas trata da impenhorabilidade na hipótese de hipoteca (art. 3º, V, da Lei 8.009/1990)”, ao passo que a segunda é “questão específica que não necessariamente se relaciona com a primeira, uma vez que a necessidade de prova da reversão do proveito em prol da entidade familiar não necessariamente se dará nas hipóteses em que existam garantias prestadas em favor de sociedade da qual façam parte os proprietários do bem de família”.

A afetação do tema pelo STJ causa grande preocupação, especialmente no que tange à necessidade de comprovação de proveito da entidade familiar. Isso porque a necessidade de prova da reversão do proveito em prol da entidade familiar – por parte do credor – nas hipóteses em que existam garantias prestadas em favor de sociedade da qual façam parte os proprietários do bem de família retira substancial força da hipoteca (e demais garantias reais) e tende a diminuir a confiança nas contratações e assim, na concessão de créditos em geral.

Não se pode olvidar do basilar princípio da boa-fé objetiva que permeia todas as relações jurídicas. Sobre os deveres das partes nas relações obrigacionais leciona Nelson Rosenvald:

Os deveres de conduta são conduzidos ao negócio jurídico pela boa-fé, destinando-se a resguardar o fiel processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra. Eles incidem tanto sobre o devedor quanto sobre o credor, mediante resguardo dos direitos fundamentais de ambos, a partir de uma ordem de cooperação, proteção e informação, em via de facilitação do adimplemento, tutelando-se a dignidade do devedor e o crédito do titular ativo [1].

 

A verdade é que, em última análise, admitir que a garantia hipotecária prestada pelo devedor possa ser singelamente invalidada acaba por prejudicar a sociedade em geral, em especial os pequenos e microempresários, que terão cada vez mais dificuldade para obtenção de crédito para desenvolvimento de suas atividades.

Como bem ponderou a Ministra Maria Isabel Gallotti no julgamento do REsp nº 988.915/SP: “A jurisprudência aparentemente protetiva acaba por prejudicar aqueles mesmos a quem, em princípio, pretendeu a Lei 8.009/90 resguardar, assegurando-lhes o direito de contar com bem apto a servir de garantia” [2].

Atualmente os recursos afetados estão com prazo aberto para pedidos de ingresso de amicus curiae, havendo expectativa de que diversos órgãos e entidades habilitem-se no processo a fim de fornecer subsídios técnicos e jurídicos suficientes para que o STJ julgue e bem defina o tema.

 

[1] ROSENVALD, Nelson. Código Civil comentado. São Paulo: São Paulo, 2010, p. 483.

[2] STJ. REsp nº 988.915/SP. Quarta Turma. Min. Rel. RAUL ARAÚJO. j. 15.5.2012.