O veto presidencial ao PL 4188/2021 no tocante à possibilidade de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis precisa ser derrubado pelo Congresso Nacional.

Nesta terça-feira (31/10) foi sancionado com veto o intitulado “Marco Legal das Garantias” (PL 4188/2021), o qual dispõe, dentre outras matérias, sobre o serviço de gestão especializada de garantias, o aprimoramento das regras de garantias e o procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis em caso de inadimplemento de contrato de alienação fiduciária.

 

Em verdadeiro retrocesso, foram vetados os dispositivos legais que tratavam da possibilidade de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis por cartório ou órgão de trânsito sem prévia atuação do Poder Judiciário (art. 6º). Nos termos do veto presidencial:

 

Em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa incorre em vício de inconstitucionalidade, visto que os dispositivos, ao criarem uma modalidade extrajudicial de busca e apreensão do bem móvel alienado fiduciariamente em garantia, acabaria por permitir a realização dessa medida coercitiva pelos tabelionatos de registro de títulos e documentos, sem que haja ordem judicial para tanto, o que violaria a cláusula de reserva de jurisdição e, ainda, poderia criar risco a direitos e garantias individuais, como os direitos ao devido processo legal e à inviolabilidade de domicílio, consagrados nos incisos XI e LIV do caput do art. 5º da Constituição.

[…]

A inovação pretendida também oferece risco à estabilidade das relações entre particulares ao relativizar direitos e garantias individuais, independentemente de decisão judicial.

 

Lamentavelmente, o veto presidencial evidencia retrocesso e desacordo com o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, órgão o qual, há tempos, confirma a possibilidade da execução extrajudicial de garantias.

 

Nesse sentido citam-se os Temas 249 e 982 do STF. No primeiro, o STF, reafirmando posicionamento firmado em 1998[1], declarou no julgamento dos RE 556.520 e 627.106, a constitucionalidade do Decreto-Lei nº 70 de 21.11.1966 no que tange à autorização do credor imobiliário executar extrajudicialmente a garantia.

 

Já no Tema 982, cujo julgamento foi finalizado há nada menos do que 4 dias (26/10/2023), a Corte Superior firmou o entendimento de que “é constitucional o procedimento da Lei nº 9.514/1997 para a execução extrajudicial da cláusula de alienação fiduciária em garantia, haja vista sua compatibilidade com as garantias processuais previstas na Constituição Federal”.

 

Ao contrário do quanto suscitado na justificativa do veto presidencial, a realização da busca e apreensão de bens móveis de modo extrajudicial não viola a chamada cláusula de reserva legal de jurisdição, tampouco representa, em si mesma, ofensas aos direitos e garantias constitucionais por hipotética ofensa ao devido processo legal.

 

Como não poderia mesmo deixar de ser, o próprio projeto de Lei prevê expressamente que “o procedimento extrajudicial não impedirá o uso do processo judicial pelo devedor fiduciante” (art. 6º, §11), garantindo ao devedor que, a qualquer momento e por qualquer razão que lhe pareça adequada, possa recorrer ao Poder Judiciário a fim de ver assegurado direito eventualmente preterido.

 

Além do mais, a Constituição Federal brasileira sequer prevê a chamada “reserva de jurisdição”, razão pela qual, cada vez com mais força, a jurisdição a ser prestada e garantida pelo Estado deve ser vista como a atividade a ser realizada por um terceiro imparcial, independente e equidistante das partes[2], devidamente investido para tanto, que não necessariamente o Poder Judiciário.

 

Humberto Theodoro Junior destaca, com propriedade, que a tutela jurisdicional pode ser prestada por agentes externos ao Poder Judiciário:

 

É certo que o acesso à tutela jurisdicional tem caráter de garantia fundamental. O que, entretanto, não mais prevalece é que essa tutela seja prestada exclusivamente pelo Poder Judiciário. O Poder Público não pode deixar de propiciá-la ao titular do direito lesado ou ameaçado, o que, entretanto, poderá ser feito tanto pela justiça estatal como por outros organismos credenciados pela lei. É claro que, afinal, o Poder Judiciário conservará o controle de legalidade sobre a atuação desses organismos extrajudiciais.[3]

 

São inúmeras as razões pelas quais o veto presidencial mostra-se equivocado, esperando-se que o Congresso Nacional, vislumbrando não só o erro interpretativo sobre a suposta inconstitucionalidade do dispositivo, mas em especial os prejuízos advindos da exclusão do sistema da possibilidade da busca e apreensão extrajudicial de bens móveis, rejeite o veto, encaminhando para promulgação o artigo 6º do PL 4188/2021 em sua íntegra.

 

[1] No julgamento do recurso extraordinário 233.075-1.

[2] CARVALHO, Milton Paulo de. Os princípios e um novo Código de Processo Civil. In: CARNEIRO, Athos Gusmão; CALMON, Petrônio (Coords.). Bases científicas para um renovado direito processual. Salvador: JusPodivm, 2009. p. 199.

[3] THEODORO JUNIOR, Humberto. Projeto legislativo de desjudicialização da execução civil. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/332358/projeto-legislativo-de-desjudicializacaoda-execucao-civil. Acesso em 31 out. 2023