Flávia Pereira Ribeiro e Renata Cortez
Desjudicialização da execução. Primeiros contrapontos à Nota Técnica da AMB contrária ao PL 6.204/19, com enfoque na reserva de jurisdição e inafastabilidade do controle jurisdicional.
Indiscutivelmente, a desjudicialização, como instrumento de redirecionamento da solução de questões do Poder Judiciário para as Serventias Extrajudiciais, com a finalidade de reduzir demandas, tem se revelado uma tendência. Como exemplos, podem ser mencionadas as escrituras públicas de divórcio, extinção da união estável, inventário e partilha, alteração de prenome e gênero, casamento homoafetivo e reconhecimento da filiação socioafetiva, além da usucapião extrajudicial, procedimentos que podem ser levados a efeito no âmbito das serventias notariais e de registros sem intervenção judicial.
Seguindo esse caminho e com escopo de desafogar o Poder Judiciário, notadamente no que concerne à principal causa de suas altas taxas de congestionamento, qual seja, a fase executiva1, a senadora Soraya Thronicke apresentou ao Congresso Nacional, em novembro do ano passado, o Projeto de Lei nº 6.204/20192, que visa implementar a desjudicialização da execução civil dos títulos judiciais e extrajudiciais para os tabelionatos de protestos.
Inspirado na experiência da desjudicialização da execução vivenciada em outros países, principalmente na portuguesa, bem como na tese de doutorado da autora Flávia Pereira Ribeiro3, o PL 6.204/2019 sugere que ao tabelião de protestos seja atribuída com exclusividade a função de agente de execução, incumbindo-lhe a prática de diversas atividades hoje desempenhadas por juízes e servidores do Poder Judiciário, dentre as quais se podem mencionar: a verificação dos requisitos do título executivo, inclusive a ocorrência de prescrição e decadência; a realização da citação do executado; a efetivação de atos de expropriação, como a penhora; a suspensão e a extinção da execução.
Levando em conta que várias competências exercidas exclusivamente pelo juiz na fase executiva passariam a ser realizadas pelos agentes da execução – no caso, pelo tabelião de protestos – é certo que o PL 6.204/19 tem suscitado diversos debates e até manifestações públicas favoráveis e desfavoráveis ao teor de seus dispositivos, inclusive por parte de entidades de classe, a exemplo da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), que apresentou recentemente Nota Técnica contrária ao PL 6.204/20194.
No presente texto, as autoras apresentam contrapontos a dois dos fundamentos contidos na Nota Técnica da AMB, quais sejam: i) os atos expropriatórios estão sujeitos à reserva de jurisdição e ii) o PL contraria o princípio da inafastabilidade jurisdicional.
i) Um primeiro aspecto a ser referido é a necessidade de demitificar a ideia de que a jurisdição é monopólio do Poder Judiciário. A função jurisdicional é típica, mas não exclusiva do Judiciário. Se efetivamente há monopólio da função jurisdicional5, este é do Estado, que pode atribuir/delegar, por meio da própria Constituição ou por meio de Lei específica, o seu exercício a órgãos e autoridades de outros Poderes (inclusive do Executivo e do Legislativo) e também a entes privados, como no caso da arbitragem.
Ademais, a denominada cláusula constitucional de reserva de jurisdição, que importaria reconhecer que a prática de determinados atos somente poderia emanar do juiz, e não de terceiros, não se aplica, no entender das autoras, aos atos processuais executivos, sequer aos expropriatórios. Isso porque não há qualquer dispositivo constitucional que, de modo expresso, imponha a prática desses atos exclusivamente por juízes de direito.
O art. 5º, inciso LIV, da Constituição determina a observância do devido processo legal quanto à privação da liberdade e de bens, sendo que tal garantia deve ter incidência em qualquer processo, judicial ou extrajudicial, que possa causar prejuízo àqueles que dele participem. Não é à toa que o inciso seguinte (LV) estabelece que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, são assegurados o contraditório e ampla defesa, que são garantias decorrentes do devido processo legal.
Diversamente do que ocorre com a liberdade – porquanto, com exceção das hipóteses de flagrante, a prisão só pode ser decretada por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente (art. 5º, LXI, da CF) – não há dispositivo constitucional que submeta, de modo genérico, as restrições ao direito de propriedade, como a privação de bens, à intervenção judicial.
Ressalte-se que, nos processos que tramitam nas serventias extrajudiciais, deve ser garantido o devido processo legal com todos os seus consectários. Ademais, sendo o delegatário um profissional do direito, tem competência técnica para analisar a conformidade normativa dos atos que realiza, bem como daqueles praticados nos processos em que atua. Na verdade, a observância da legalidade (em sentido amplo) trata-se de dever funcional dos delegatários, considerando-se infração disciplinar o não atendimento das prescrições legais ou normativas.
ii) Do mesmo modo, o PL 6.204/19 não viola o art. 5º, inciso XXXV da CF, que consagra o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, cuja releitura vem sendo proposta por diversos doutrinadores.
Rodolfo Mancuso propõe um novo entendimento para jurisdição e para o acesso à justiça, sempre tendo em vista as modernas necessidades da sociedade e as reais possibilidades do Estado. Para ele, a atividade jurisdicional é perfeitamente desempenhável por outros agentes, órgãos ou instâncias, desde que aptos a resolver conflitos com justiça e em tempo hábil6.
Rosalina Freitas, por seu turno, sugere uma mutação constitucional do art. 5º, XXXV, da CF, para que o termo poder signifique função, “faculdade de ação ou competência para agir em determinada faixa de atividade jurídica”. A leitura do texto constitucional seria, então, a seguinte: “a lei não excluirá da função jurisdicional lesão ou ameaça a direito”. A partir dessa premissa, Rosalina Freitas defende o exercício da função jurisdicional por órgãos diversos do Judiciário e vai além: em seu entender, uma vez “julgado processo administrativo por determinados órgãos, não se deve admitir o controle ilimitado do mérito daquelas decisões pelo Poder Judiciário. Tutela jurisdicional adequada não pode ser identificada exclusivamente com Poder Judiciário”7.
A jurisdição, portanto, deve ser vista como a função de declarar e satisfazer os direitos, atividade a ser realizada por um terceiro imparcial, independente e equidistante das partes, devidamente investido para tanto, que pode ser um magistrado ou um particular.
Assim, afigura-se admissível o exercício da função jurisdicional e, bem assim, a prática de atos executivos e expropriatórios8 por órgãos e entes não integrantes do Poder Judiciário, inclusive privados, sem que isso represente violação ao art. 5º, XXXV, da Constituição.
Ademais, a intervenção judicial não seria afastada de modo absoluto no processo executivo extrajudicial previsto no PL 6.204/2019. Ao contrário, revelar-se-ia indispensável a atuação do magistrado em algumas situações: a) solução de controvérsias entre exequente e executado, em caso de propositura de embargos do executado ou de impugnação ao cumprimento de sentença; b) aplicação de medidas de força ou coercitivas; c) resposta a consultas do agente da execução sobre questões relacionadas ao título exequendo e ao procedimento executivo; e d) julgamento de suscitações de dúvida apresentadas pelos interessados relativamente às decisões dos agentes da execução.
Estaria, portanto, garantido o acesso ao Judiciário sempre que, no processo de execução em trâmite perante os tabelionatos de protestos, houvesse prejuízo, concreto ou iminente, às partes envolvidas. O recurso à via judicial, contudo, tornar-se-ia a ultima ratio9.
Não se pode negar que o Poder Judiciário não tem conseguido oferecer rapidez, segurança e justiça das decisões, e menos ainda o efetivo acesso à ordem jurídica. Desse modo, revela-se imprescindível acatar e trabalhar pelo fortalecimento de outros instrumentos de pacificação social e realização de direitos, tais como os propostos pelo PL 6.204/19.
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1- Segundo o Justiça em Números do CNJ de 2019, no ano de 2018, a taxa de congestionamento nos Tribunais de Justiça era de 73,9%. Dos 79 milhões de processos pendentes de baixa no final do ano de 2018, mais da metade (54,2%) se referia à fase de execução.
2- Clique aqui, capturado em 02.08.2020.
3- RIBEIRO, Flávia Pereira. Desjudicialização da execução civil. 2ª Ed. Curitiba: Juruá, 2019.
4- Razões apresentadas na referida Nota Técnica: “a) Os atos expropriatórios estão sujeitos à reserva de jurisdição; b) O PL contraria os princípios fundamentais da jurisdição, quais sejam: os princípios do juiz natural, da indeclinabilidade e da indelegabilidade; c) O PL contraria o princípio da inafastabilidade jurisdicional; d) O PL tende a tornar a execução civil menos efetiva; e) O PL é inadequado para realizar os fins a que se propõe; e f) A solução para o excesso de demanda perante o Judiciário não se resolve mediante a supressão das competências constitucionalmente atribuídas a esse Poder”.
5- Como bem sustenta Joel Dias Figueira Júnior (In: Arbitragem (legislação nacional e estrangeira) e o monopólio jurisdicional. São Paulo: LTr, 1999. p. 12), é necessário enfrentar com “coragem, seriedade e de imediato o tormentoso problema do monopólio da jurisdição estatal, que diuturnamente tem demonstrado e comprovado de maneira cabal a sua insuficiência instrumental em solucionar a contento os conflitos não raramente complexos e inçados de múltiplas dificuldades, tanto no plano fatual quanto jurídico, que se apresentam no cotidiano do Judiciário”.
6- MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à justiça: condicionantes legítimas e ilegítimas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 342.
7- SOUSA, Rosalina Freitas Martins de. A função jurisdicional adequada e a releitura do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (CRFB/88, art. 5°, XXXV). 2017. 213f. Tese de Doutorado em Direito. Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2017.
8- A discussão acerca da natureza jurídica da tutela executiva, se jurisdicional ou administrativa, tem importância relativa para o debate em torno do PL 6.204/2019. Ainda que jurisdicional, entende-se que a atividade executiva pode ser partilhada, como já defendia Giuseppe Chiovenda (Instituições de direito processual civil – v. 2. Tradução de Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1998. p. 21).
9- Flávia Pereira Hill, sobre instrumentos normativos de desjudicialização, tem feito pertinentes ponderações em relação à apreciação judicial como ultima ratio. Clique aqui, capturado em 29.07.2020.
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*Flávia Pereira Ribeiro é pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa (2020). Doutora em processo civil pela PUC/SP (2012). Mestre em processo civil pela PUC/SP (2008). Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP (2014). Membro do IBDP, do CEAPRO e do IASP. Membro do Conselho Editorial da Juruá Editora e da Revista Internacional Consinter de Direito. Diretora Jurídica da ELENA S/A. Sócia de Flávia Ribeiro Advocacia (desde 2008).
*Renata Cortez é registradora civil e tabeliã no Estado de Pernambuco. Mestre em Direito e Especialista em Direito Processual Civil pela UNICAP. Membro do IBDP. Membro da ANNEP. Coordenadora da Pós-Graduação em Advocacia Extrajudicial do IAJUF/Unirios.