Sessões de julgamento e depoimentos realizados por tele e videoconferência na CVM

Flávia Pereira Ribeiro e Cristiane Rodrigues Iwakura

 

No dia 30 de abril de 2020, a Comissão de Valores Mobiliários publicou a deliberação CVM 855/20 regulamentando a realização de sessões de julgamento exclusivamente por videoconferência em razão das medidas de isolamento social determinadas pela lei 13.979/20, e bem recentemente, lançou a deliberação CVM 861/20, estabelecendo procedimentos para a realização de depoimentos por tele e videoconferência.

Inicialmente, insta salientar que no ambiente processual a diferença entre a tele e a videoconferência se dá em razão do grau de participação de todos os presentes naquele ato.

Na teleconferência a participação ativa se limita às partes que integram o processo, estando os demais participantes ali presentes na condição de meros ouvintes. Já na videoconferência, todos os participantes presentes, independentemente de serem partes integrantes do processo, podem se manifestar em igualdade de condições. Desta forma, pode-se dizer que na teleconferência está presente a garantia da publicidade, enquanto na videoconferência se faz presente o contraditório efetivo, uma vez garantida a oralidade a todos os presentes naquele ato, indistintamente.

A deliberação CVM 855/20 se refere à garantia processual da razoável duração do processo e dos meios que garantam a celeridade de sua tramitação como a principal justificativa para a adoção da videoconferência nas sessões de julgamento em processos administrativos sancionadores, enquanto perdurarem as medidas da lei 13.979/20.

No inciso I da deliberação CVM 855/20 são mencionados outros princípios processuais importantes como: princípio da não-surpresa (alínea “a”, ao se exigir convocação da sessão de julgamento com indicação expressa de sua realização no meio digital); contraditório e ampla defesa (alínea “b”, ao se permitir que acusados e procuradores participem ativamente das sessões de julgamento virtuais); oralidade (alíneas “b”, “c” e “d”, que autorizam e regulam os pedidos de sustentação oral) e publicidade (alíneas “e” e “f”, que determinam o compartilhamento de dados de acesso e gravação do ato para fins de registro).

Curiosamente, o inciso II traz a possibilidade de se realizar na CVM a sessão virtual, que guarda certas semelhanças em relação ao procedimento dos plenários virtuais do STJ e do STF, como a dispensa da videoconferência mediante a manifestação dos acusados e de seus procuradores pelo não interesse em sua realização, o que por si só torna questionável a publicidade desses atos e a presença de garantias como as do contraditório e oralidade.

Com relação à publicidade, merecem destaque os incisos III e IV da deliberação CVM 855/20. O inciso III estabelece que a autarquia não disponibilizará ao público salas ou auditórios para participação nas sessões realizadas exclusivamente por videoconferência. Esta restrição faz todo o sentido no contexto da pandemia, pois a intenção da norma é justamente evitar que os interessados circulem nas repartições públicas e tenham contato uns com os outros.

Com relação ao inciso IV, a CVM determina que as instruções para acesso à videoconferência serão disponibilizadas no seu site oficial ou enviadas por e-mail em até 2 horas do horário previsto para o seu início. Ademais, para os ouvintes, haveria um limite para a sua participação decorrente da capacidade da ferramenta de tecnologia, respeitando-se a ordem cronológica de seu ingresso no sistema.

Seria muito mais adequado empregar-se no inciso IV a conjunção “e” ao invés de “ou”, servindo a comunicação por e-mail como meio principal de acesso dos acusados e procuradores na sessão de julgamento, e a página oficial da CVM um reforço à primeira, além de ser o único meio de divulgação aos terceiros interessados que não sejam parte integrante do processo e não tenham endereços eletrônicos cadastrados na autarquia federal para receber automaticamente estas informações.

Uma segunda inconsistência está na limitação da participação do público à capacidade da ferramenta, o que se agrava diante do fato de não se vislumbrar na deliberação expressa previsão sobre a plataforma de acesso e outras especificações técnicas relevantes.

Outra previsão com teor questionável está no inciso V da deliberação que, a seu turno, estabelece que o preenchimento dos requisitos operacionais e de conexão, assim como quaisquer questões alheias à CVM, são de exclusiva responsabilidade do inscrito.

Novamente faz-se aqui uma crítica quanto à indefinição dos meios e plataformas digitais eleitos pela autarquia para a realização da sessão de julgamento, tornando frágil a previsão de responsabilização do particular por eventuais falhas e problemas de conexão.

No inciso VI permite-se a apresentação de memoriais por dois possíveis meios: oral, em audiência particular por vídeo ou teleconferência, ou por escrito, via protocolo digital.

Por fim, dispõem os incisos VII e IX, da deliberação CVM 855/20, que as sessões de julgamento digitais deverão ser convocadas com pelo menos 15 dias de antecedência e que o resultado do julgamento deverá ser divulgado em até 24 horas a partir de seu encerramento.

A deliberação CVM 861 de 23 de julho de 2020, publicada bem recentemente, no dia 23 de julho de 2020, trouxe consigo o regramento para a realização de depoimentos por tele e videoconferência, no âmbito da atividade sancionadora desenvolvida pela autarquia federal, igualmente em função das medidas de proteção determinadas pelo Poder Público para o enfrentamento da pandemia.

A deliberação 861/20 também teve por objetivo intensificar a importância das atividades desenvolvidas no meio informatizado em razão da evolução tecnológica, destacando expressamente a necessidade de se promover a economicidade, efetividade e segurança do procedimento para a Administração Pública e para o administrado.

Estabelece a deliberação CVM 861/20 que os depoimentos serão gravados pela autarquia, fazendo parte integrante dos autos do processo administrativo ou inquérito correspondente, devendo ser disponibilizada a cópia eletrônica mediante solicitação escrita ou oral (inciso I, “a”, 4).

No que tange à identificação dos participantes, o inciso I, “c”, 1 e 2 da deliberação em comento exige a apresentação de documento válido de identidade com foto, que provavelmente deverá ser exibido na tele ou videoconferência por meio de transmissão da imagem em mãos do seu portador. Mas como não houve previsão expressa quanto à forma, nada impede que o servidor solicite esta documentação por e-mail ou qualquer outro tipo de mensagem eletrônica, sugerindo-se, desde logo, que seja permitida a identificação por assinatura digital daquele que possuir e-CPF.

O inciso I, “c”, 3, da deliberação CVM 861/20, estabelece que o depoente, na condição de testemunha, deverá prestar o compromisso de dizer a verdade, sob pena de incorrer no crime previsto no art. 342 do CP.

Ao final do depoimento, garante o inciso I, c, 4, que seja entregue ao depoente certidão eletrônica comprovando a sua realização, e o inciso III permite que o pedido de juntada de documentos seja realizado via protocolo digital ou outro meio eletrônico acordado com os servidores responsáveis.

Em caso de ausência de condições tecnológicas para que o depoente faça o depoimento no meio virtual, estabelece o inciso II que ele deverá comunicar imediatamente a Superintendência da CVM, no entanto, nada especifica o que ocorrerá na sequência: se a diligência somente será realizada presencialmente após findar o isolamento social, ou se a CVM providenciará ao depoente o acesso remoto às suas expensas. Evidencia-se, assim, uma lacuna que deveria ser preenchida o mais breve possível, até porque o inciso IV fala que a ausência injustificada por parte do depoente acarreta multa nos termos do art. 10 da ICVM 608/19, e esta punição poderá ser injustamente aplicada ao depoente que tiver essa dificuldade de acesso virtual.

Em que pese o fato de ser extremamente salutar a previsão das duas Deliberações em comento para que se dê seguimento à atuação reguladora pela CVM em tempos de pandemia, várias questões de ordem processual poderiam ser tratadas com maior profundidade, para que assim não se incorra na mitigação ou violação de princípios e garantias aplicáveis à espécie.

Pode-se também concluir que algumas normas foram inspiradas em regramentos preexistentes nos Tribunais Superiores para as videoconferências e sessões virtuais de julgamento, restando questionáveis as previsões que responsabilizam o administrado pela inoperância do sistema sem a correspondente previsão exaustiva sobre relevantes aspectos técnicos, como é o caso da indefinição das plataformas digitais para o seu processamento, dentre outros.

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*Flávia Pereira Ribeiro é pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial. Membro do IBDP, do CEAPRO e do IASP. Diretora Jurídica da ELENA S/A. Sócia de Flávia Ribeiro Advocacia. Atuação no Contencioso Cível e Imobiliário e Consultivo Imobiliário.

*Cristiane Rodrigues Iwakura é doutora e mestre em Direito Processual. Pós-graduada em Direito Público e em Regulação de Mercado de Capitais. Professora de Direito Processual Civil e de Processo Administrativo Sancionador. Procuradora Federal lotada na CVM atualmente em exercício como Coordenadora da Escola da AGU na 2ª Região

 

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