Breves apontamentos sobre a citação por WhatsApp

Texto escrito por Flávia Pereira Ribeiro e César Augusto Costa Silva publicado no site Migalhas em 14.7.2021.

Link para acesso: https://www.migalhas.com.br/depeso/348506/breves-apontamentos-sobre-a-citacao-por-whatsapp

 

A citação é o ato pelo qual se dá ciência ao réu de demanda ajuizada contra ele, chamando-o a integrar e formar a relação processual. Trata-se, sem dúvida, do ato mais relevante e importante do processo, na medida em que, sem ele, não se aperfeiçoa a triangularização do processo – autor, juiz e réu. Além disso, eventual sentença proferida sem a citação válida do réu é inexistente, por se tratar de nulidade insanável, que pode ser arguida a qualquer momento.

Certamente pela relevância do ato citatório é que a recente decisão proferida pelo MM Juízo da 44ª Vara Cível do Foro Central da Comarca da Capital do Estado de São Paulo [1] que autorizou a realização da citação do réu por WhatsApp ganhou destaque e fomentou discussões sobre a validade/legalidade do ato citatório através da plataforma de troca de mensagens instantâneas que se encontra na 3ª posição das redes sociais mais utilizadas em todo o mundo [2].

Não se olvida que a utilização da tecnologia e de plataformas digitais vêm ganhando relevo, recebendo acertado prestígio do Poder Judiciário. De fato, inevitável a modernização do processo e a adoção das tecnologias em benefício da efetividade do processo. O CNJ, ao instituir o denominado “PJE” (Resolução nº 185/2013), determinou que “no processo eletrônico, todas as citações, intimações e notificações, inclusive da Fazenda Pública, far-se-ão por meio eletrônico” (art. 19). A recentíssima Resolução nº 335, de 29.09.2020, atualizou a anterior:

Institui política pública para a governança e a gestão de processo judicial eletrônico. Integra os tribunais do país com a criação da Plataforma Digital do Poder Judiciário Brasileiro – PDPJ-Br. Mantém o sistema PJe como sistema de Processo Eletrônico prioritário do Conselho Nacional de Justiça [3].

Além disso, o CNJ caminhou muito nesses tempos de pandemia, emitindo inúmeras resoluções para viabilizar o efetivo acesso à justiça pelo modo digital. Apesar das grandes dificuldades, o Poder Judiciário superou-se em termos de acessibilidade e disponibilidade no último ano e meio – mérito que deve ser reconhecido.

Nesse passo, não é de hoje que se prioriza a finalidade em detrimento do formalismo processual exacerbado. Nesse sentido, o disposto no artigo 13 da Lei Federal nº 9.099 promulgada em 1995 já estabelecia que “os atos processuais serão válidos sempre que preencherem as finalidades para as quais forem realizados”. O atual Diploma Processual, suprimindo parte de seu correspondente legislativo anterior, estabelece que o juiz considerará válido ato praticado de modo diverso ao prescrito em Lei se alcançada a finalidade prevista (art. 277), pouco importado se havia previsão expressa de nulidade caso não observada a forma determinada (art. 244 do CPC/73), até porque, como bem se sabe, não há nulidade sem prejuízo (pas de nullité sans grief).

Exatamente sob esse prisma deve ser analisada a possibilidade – ou não – da realização da citação por WhatsApp, nos termos do que foi decidido recentemente pelo MM Juízo já citado.

Na casuística, o autor da ação pugnou já em sua exordial pela citação por edital do réu haja vista que em ação judicial anterior que tramitou perante o Juizado Especial Cível pesquisas de endereços foram realizadas e não se logrou êxito em localizar o atual paradeiro do réu, sabendo o autor, segundo sustenta, que os endereços encontrados nos estados do Acre, Santa Catarina e Goiás não estariam atualizados vez que o réu estaria residindo no Município do Guarujá, Estado de São Paulo.

O MM Juízo indeferiu o pedido de citação por edital e determinou a realização de pesquisas de endereços, e, após o resultado das buscas, o autor requereu a citação do réu por WhatsApp, sustentando que “à época das inúmeras e inexitosas tratativas pré-processuais para autocomposição”, a patrona que representa seus interesses realizou diversos contatos com o réu via WhatsApp.

O autor evidenciou que no âmbito do Poder Judiciário, em especial após a decretação do estado de calamidade pública por força da pandemia Covid-19, diversos foram os atos normativos editados para viabilizar a continuidade dos processos mediante adoção de formas mais ‘desburocratizadas’ de intimações/comunicações e realização de audiências e atendimentos, a saber os Comunicados CG 262/2020, 266/2020, 284/2020 e 610/2020 no âmbito da Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo e as Recomendações 70/2020 e 313/2020 do Conselho Nacional de Justiça.

Por fim, o autor citou o recente acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Habeas Corpus 641.877/DF, ocasião em que a Corte Superior, em que pese tenha reconhecido a nulidade da citação por WhatsApp no caso julgado, acenou pela possibilidade da utilização desse modo de citação desde que adotadas “medidas suficientes para atestar a identidade do indivíduo [réu]” – o que, de acordo com o autor, seria possível in casu.

Foi proferida, então, a bem fundamentada decisão do MM Juízo que autorizou a realização da citação por WhatsApp, advertindo a serventia de que deveriam ser adotadas as cautelas de “enviar a contra-fé pelo próprio WhatsApp” e “certificar nos autos quando isso foi feito, bem como certificar quando lida a mensagem”, devendo constar na conversa, ainda, mensagem de que o réu “deve buscar advogado para se defender nos autos”.

Diz-se bem fundamentada por ter o MM Juízo declinado as razões pelas quais, no caso em análise, entendeu possível a citação por WhatsApp, providência pouco usual, mas que, não obstante a “ausência de previsão em lei”, seria plenamente possível à luz da razoabilidade e da eficiência, princípios consagrados no Diploma Processual em seu artigo 8º. Além disso, alterando a própria decisão, o mandado de citação foi expedido para que o oficial de justiça cumprisse o desiderato da citação, já que, diante da sua fé pública, poderia certificar o ocorrido no ato citatório: recebimento ou não, eventual resposta ou não, contato anterior ou posterior por meio do próprio número indicado.

A discussão acerca da validade/possibilidade de citações e intimações através do aplicativo mencionado ainda é embrionária. O tema, contudo, vem sendo cada vez mais enfrentado pelo Poder Judiciário. Além do precedente da Corte Superior já citado, há julgamentos do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre o assunto, sendo certo que a 3ª Câmara de Direito Privado já decidiu que a utilização do WhatsApp para citação na casuística revelava “verdadeiro instrumento da concretização da entrega da prestação jurisdicional dentro de prazo razoável” [4].

Na mesma linha dos precedentes referidos nesse breve comentário, parece possível – e até indicado, em certos casos – a citação por intermédio do aplicativo de mensagens WhatsApp. Alguns pontos, no entanto, merecem especial atenção e precisam ser objeto de amplo e intenso debate a fim de melhor enfrentar a matéria que, em razão do avanço natural da tecnologia, certamente tornar-se-á cada vez mais comum.

Inicialmente, parece-nos ser o caso de autorizar a citação por WhatsApp apenas quando a citação por carta ou por oficial de justiça não for possível no caso concreto. Em decisão fundamentada, o Juízo precisa declinar pormenorizadamente as razões pelas quais a citação pelos correios ou por mandado foi ou seria inútil, seja qual for o motivo, desde a inexistência de endereço em pesquisas até a existência de endereços múltiplos não representativos da realidade.

Cumulativamente à ponderação anterior, deve existir nos autos comprovação de que o WhatsApp informado pelo autor de fato pertence ao réu. Nos dias atuais, em que cada vez mais se utiliza a plataforma para objetivos diversos, trata-se de prova de relativa facilidade de produção. Por vezes, aliás, prints de conversas no WhatsApp servem como prova das alegações e pedidos iniciais, razão pela qual se mencionados documentos podem ser utilizados para fundamentar a procedência ou improcedência dos pedidos iniciais, devem ser suficientes para demonstrar a titularidade da conta para fins de citação.

Além da análise da validade da determinação da citação pelo WhatsApp, é o caso de se perquirir se o réu de fato recebeu o ato citatório.

Nesse diapasão, parece, inicialmente, que a citação por WhatsApp deve ser efetivada por oficial de justiça, não cabendo à serventia do cartório realizar o ato – conforme alterado no caso concreto. Cabe ao oficial de justiça realizar pessoalmente as citações e certificar no mandado os fatos ocorridos “com menção ao lugar, ao dia e à hora” (art. 154 do CPC). Por força de sua fé pública, o oficial de justiça pratica atos que gozam de presunção de veracidade, de modo que é ele o auxiliar da justiça apto a encaminhar a mensagem via WhatsApp e atestar (i) que o réu é, de fato, o titular da linha indicada pelo autor; e (ii) que o réu recebeu o mandado de citação.

Para cumprir as exigências da citação válida, o oficial de justiça pode certificar, por exemplo, que a mensagem foi enviada e a confirmação de leitura foi ativada (dois tiques azuis); ou mesmo que a mensagem não foi recebida pelo réu, situação em que devolveria o mandado negativo.

Situação intrigante sobre a citação por WhatsApp é quando o réu desativa a função de confirmação da leitura de suas mensagens. Nesse caso, o oficial de justiça poderia ligar para o réu via Whatzapp e certificar os fatos ocorridos. Diante das constatações, a depender do caso, poder-se-ia entender que a citação foi ficta, nos moldes da citação por edital, designando-se curador.

Nada impede, por óbvio, que o réu comprove posteriormente a nulidade da citação. Bastaria demonstrar que teve seu WhatsApp clonado ou mesmo o celular roubado, situação em que a presunção de veracidade do ato citatório por oficial de justiça cederia frente à comprovação da não realização da citação válida.

Há muito a se avançar, especialmente em termos de regulamentação e legislação a respeito, mas não há dúvidas que a citação por WhatsApp é uma tendência do processo eletrônico, da Justiça 100% digital, do balcão eletrônico, das modernidades advindas – e bem recebidas – da pandemia. É mais do que hora de revisitar conceitos, padrões, dogmas e adaptar-se às necessidades da nova realidade social.

 

[1] Decisão proferida nos autos do processo nº 1030291-25.2021.8.26.0100.

[2] Segundo dados da Most popular social networks worldwide as of July 2021 divulgado pela empresa Statista.com Disponível em: https://www.statista.com/statistics/272014/global-social-networks-ranked-by-number-of-users

[3] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução n. 335 de 29 de setembro de 2020. Institui política pública para a governança e a gestão de processo judicial eletrônico. Integra os tribunais do país com a criação da Plataforma Digital do Poder Judiciário Brasileiro – PDPJ-Br. Mantém o sistema PJe como sistema de Processo Eletrônico prioritário do Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3496

[4] TJSP. Agravo de Instrumento nº 2083732-10.2021.8.26.0000. 3ª Câm. Dir. Priv. Des. Rel. DONEGÁ MORANDINI. j. 3.5.2021.